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Gomorra


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Comecei a minha temporada de ver os filmes estrangeiros com chance de concorrer ao Oscar bem: com Gomorra. Tinha escutado ótimos comentários do filme que representa a Itália na disputa por uma das vagas no cobiçado prêmio, mas ainda assim me surpreendi com ele. Seguindo a “nova onda” de produções ficcionais com cara de documentário, Gomorra parece até seguir a cartilha de Glauber Rocha e os preceitos do Manifesto Dogma 95. Mas as impressões enganam, porque ainda que o filme pareça seguir o lema de “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, no fundo ele tem uma densidade de roteiro e expõe as entranhas da questão que aborda de uma maneira primorosa e complexa.

A HISTÓRIA: Baseado no livro do jornalista italiano Roberto Saviano, o filme mostra a complexidade das relações da máfia com as comunidades em que ela está imersa. Desta forma, acompanhamos a vida do adolescente Totò (Salvatore Abruzzese), que trabalha com a mãe (Anna Sarnelli) no mercado familiar como entregador de mercadorias nas casas da vizinhança, enquanto acompanha os movimentos da máfia e busca entrar no grupo. O roteiro também destaca histórias como a de Don Ciro (Gianfelice Imparato), um “trabalhador-padrão” da máfia responsável por distribuir o dinheiro da organização para diferentes famílias de apoiadores e que se vê no meio de uma guerra entre os opositores da máfia e os integrantes da própria organização. O filme acaba abordando variadas realidades “tocadas” pela máfia napolitana, do empresário da moda até o adolescente em busca de modelos a seguir; dos amigos em busca do poder e da independência até o líder dos mafiosos locais; do empresário que facilita o depósito de lixo em locais impróprios com vantagens financeiras para a máfia e os “clientes” até as famílias protegidas pela máfia que vivem reféns dos interesses de seus líderes.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir revela momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Gomorra): A primeira característica do filme que me chamou a atenção foi o “amadorismo” das imagens e da narrativa cênica. Parece, no início, que um morador do bairro pegou uma câmera e saiu filmando o que acontecia na vizinhança. Esse tom “documentarista” ou até mesmo “amador” é proposital, é claro. Um recurso que valoriza o trabalho do diretor Matteo Garrone e o roteiro escrito por seis pessoas. O diretor se juntou ao escritor do livro homônimo e aos roteiristas Maurizio Braucci, Ugo Chiti, Gianni Di Gregorio e Massimo Gaudioso para transportar para a telona a essência da obra que originou Gomorra.

Na mesma linha de Última Parada 174, o representante do Brasil na corrida pré-Oscar, Gomorra é uma obra da ficção com cara de documentário. Ou seja, dramatiza uma situação real. No caso, narra algumas das histórias reveladas pelo jornalista Roberto Saviano sobre as ações da Camorra, a máfia napolitana. O escritor vive sob escolta policial desde outubro de 2006, depois de ter recebido ameaças de morte por parte da máfia. Detalhe: o escritor e jornalista se recusou a sair de Nápoles, justamente onde está o “problema”. Isso até outubro, quando Saviano descobriu os planos de um atentado contra ele e sua escolta previsto pela máfia para acontecer antes do Natal e, finalmente, resolveu sair do país.

Certa vez, perguntei para uma amiga italiana sobre a máfia no seu país natal. A grande pergunta que eu tinha para fazer para ela e qualquer italiano era: Afinal, por que a máfia continuava existindo? Por que a população resistia tanto em extirpar este mal de suas entranhas? Gomorra explica muitas das razões que fazem a máfia continuar viva e, mais do que nunca, forte na Itália. Ela está de tal maneira imersa na sociedade que eu me pergunto se um dia este problema conseguirá realmente ser resolvido. Parece que a Itália existe também através desta sociedade organizada e criminosa.

Achei impressionante todos os ramos de atuação dos mafiosos. Eles atuam no tráfico de drogas com a mesma força com que “trabalham” na proteção de parte da população que lhes apóiam. Ganham dinheiro com o lixo da mesma maneira com que faturam com o tráfico de armas. Em uma sociedade empobrecida – agora, em meio a crise econômica mundial, mais que nunca -, os mafiosos são um “exemplo” de êxito. Os jovens os vêem como pessoas poderosas, interessantes, que tem carros, motos, armas e mulheres à vontade. Não pude deixar de fazer um paralelo entre os mafiosos modernos e os traficantes que dominam muitos morros no Rio de Janeiro.

Algo que eu gostei no filme foi mostrar como empresários “sérios” acabam contribuindo para o poder e a fortuna dos mafiosos ao se desvencilhar de suas toneladas de lixo, por exemplo, por um preço muito menor do que o de mercado e sem se preocupar realmente com a destinação do que será tóxico em breve. Também achei interessante como o filme mostrou a máfia como um “banco” informal da população. Além deles distribuirem dinheiro periodicamente para os familiares de pessoas presas e/ou fiéis aos mafiosos, eles também financiam empresários como Dr. Enzo (Vicenzo Caso), o proprietário de uma fábrica de alta-costura.

Curioso quando eles mostram o confronto da máfia napolitana com outro tipo de máfia: a de chineses. Ainda que os chineses que aparecem na história, na verdade, não são criminosos, apenas trabalhadores. Mas no filme já se pode ver algo que percebi enquanto vivia na Espanha: como eles são trabalhadores e vivem, normalmente, isolados em sua própria cultura. Muitos dos chineses que vivem em Madrid, assim como os que aparecem no filme, acabam não falando o idioma do país que acabam adotando para viver e trabalhar. Continuam falando chinês e convivendo basicamente em um “gueto cultural”. Isso se pode ver no filme também, que ainda mostra de que maneira a máfia trata esta “concorrência”.

Falando em tratamento, os aloprados amigos Marco (Marco Macor) e Ciro (Ciro Petrone) acabam dando uma “palhinha” do que é o preconceito de alguns jovens europeus com os “latinos” e demais imigrantes que vivem atualmente no Velho Continente. Quando eles falam que os “colombianos de merda” estão em todos os lugares antes de sair para roubá-los, demonstram, ainda que rapidamente, a ojeriza dos italianos com os colombianos, peruanos, equatorianos, bolivianos, enfim, com todos os “sudacas” (como os espanhóis chamam os “sul-americanos”) que vivem no seu país. Essa é apenas um dos temas “nas entrelinhas” do filme.

É bom ressaltar que o filme é violento, um bocado violento. Não se economizam tiros na cabeça, à queima-roupa, vinganças e similares. Que ninguém pense que se trata de um filme romântico sobre a máfia. Pelo contrário. Ele segue a linha de filmes “crus” – ainda que, para mim, não chega a ser um Cidade de Deus ou um Tropa de Elite.

Segundo os créditos do filme, ele se divide em cinco histórias-tópicos diferentes: a de Totò; a de Don Ciro e Maria (Maria Nazionale); a de Franco (Tony Servillo) e Roberto (Carmine Paternoster); a de Pasquale (Salvatore Cantalupo); e a de Marco e Ciro. Na prática, todas elas acabam se entrelaçando na vizinhança e mostrando, cada uma, diferentes níveis de inserção dos mafiosos na vida cotidiana das pessoas.

NOTA: 9,2.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Na parte técnica do filme, gostei da direção um bocado “naturalista” de Matteo Garrone. Sem exagerar nos cortes rápidos ou na câmera “tremida” – algo que alguns diretores juram ser o topo do cinema artístico -, Garrone preza especialmente pela câmera na mão e no estilo “vizinho espectador”. As imagens parecem, em todo o momento, terem sido feitas por algum inquilino daqueles conjuntos habitaciones napolitanos. Detalhe: as câmeras realmente foram comandadas pelo diretor. Gostei também da direção de fotografia de Marco Onorato. Ele garante a qualidade técnica e imagens realmente limpas e plasticamente interessantes em um contexto de “ficção-realidade”.

Todos os atores realmente estão bem em seus papéis. Mas além dos já citados, queria destacar o trabalho de Salvatore Cantalupo. O alfaiate responsável pela riqueza do patrão que resolve abraçar a oportunidade de ganhar uns trocados a mais e se sente valorizado, ainda que por pouco tempo, realmente é um dos personagens mais interessantes e melhor interpretados do filme. Assim como ele, merece aplausos as interpretações de Gianfelice Imparato como Don Ciro, o homem que vive na corda-bamba; e do garoto Totò, vivido pelo jovem e carismático ator Salvatore Abruzzese.

Até o momento Gomorra ganhou três prêmios e foi nomeado a outros sete. Entre os que ganhou, destaque para o Grande Prêmio do último Festival de Cannes. Além deste, a produção abocanhou os de Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Chicago e o Prêmio Arri-Zeiss do Festival de Cinema de Munique para o diretor Matteo Garrone.

Os usuários do site IMDb conferiram a nota 7,4 para o filme. Achei baixa. No Rotten Tomatoes só existem críticas positivas para o filme. O número é baixo, apenas sete, mas todas elas aprovam a produção.

Achei muito interessante que Roberto Saviano tem um blog traduzido em cinco idiomas. Além de sua biografia, o site traz artigos, materiais de imprensa – incluindo de televisão e rádio, entre outras informações. Bem interessante, realmente.

Uma das ironias do filme é a citação de Tony Montana (personagem encarnado por Al Pacino em Scarface) pelos aloprados Marco e Ciro. Aliás, cada vez que eles aparecem na tela, eu penso: “Será possível dois tontos tão grandes? É claro que eles vão se dar mal uma hora ou outra”.

CONCLUSÃO: Um filme potente que conta, com riqueza de detalhes, as várias frentes em que a máfia napolitana Camorra está infiltrada na sociedade. Com tom “naturalista” e de semi-documentário, Gomorra vai se explicando conforme o tempo passa, mas sem ser muito explícito. É realmente importante prestar atenção nas várias nuances da história. Violento, com muitas mortes em suas pouco mais de duas horas de produção, conta com interpretações muito boas. A grande qualidade do filme é mostrar como a máfia está imersa na vida cotidiana dos italianos de uma maneira enraizada que será difícil de combater ou extirpar.

PALPITE PARA O OSCAR 2009: Para mim é certo que Gomorra estará na lista dos filmes indicados para o prêmio do próximo ano. Talvez a Academia ache ele um pouco violento demais para ser premiado, mas a verdade é que ele tem a audácia e toda uma história de “bastidores” (mais precisamente a ameaça de morte contra o jornalista responsável pela história original e por parte do roteiro) que lhe rende pontos na disputa. Ficará entre os finalistas, mas ganhar a estatueta já é outros quinhentos. Realmente falta assistir os outros filmes para, logo mais, voltar a opinar por aqui (este texto está aberto a complementos, pois).

ATUALIZAÇÃO (em 4/1/2009): Para quem leu esse texto antes e agora viu que eu baixei a nota dele, vou me justificar: depois que eu assisti a Milk e resolvi dar para ele a note 9,5, pensei que outros filmes comentados aqui antes estavam supervalorizados, como este Gomorra. Por isso resolvi dar uma nota que eu achei mais justa para ele e os demais filmes que haviam ganho uma nota bem elevada nos últimos tempos.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

3 respostas em “Gomorra”

Desculpe, mas eu preciso fazer uma correção a respeito do que você falou sobre o filme em um dado momento. Na verdade, na cena em que um dos “aspirantes à mafioso” aparece com o seu amigo atirando para inimigos imaginários em uma espécie de galpão abandonado, onde o mesmo aparece dizendo “malditos colombianos”, “eles estão por toda parte” não é uma suposta referência aos imigrantes hispânicos que supostamente estariam vivendo ali em Nápoles. E sim é uma referência ao filme clássico Scarface de1983 com Al Pacino vivendo o papel de Tony Montana; um poderoso gângster cubano que vive em Miami e passa a controlar o tráfico de drogas em toda a Flórida. Trata-se da cena final do filme quando a mansão dele é invadida por uma série de criminosos a mando de um cartel vindo da América do Sul. E também há uma cena deste filme em que Tony diz que “não gostava dos colombianos”. Logo, não se trata de uma alusão ao racismo e a xenofobia na Itália, mas sim uma alusão a um dos maiores de filmes de máfia que existe depois do Poderoso Chefão, pois Tony serve como “inspiração” para aquele pobre rapaz italiano que sonha em se tornar chefe da máfia.

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